
Em um mundo onde as demandas profissionais estão em constante evolução, a formação de médicos-veterinários e zootecnistas vai muito além da aquisição de conhecimento técnico. Hoje, para se destacar no mercado de trabalho, é importante desenvolver um conjunto abrangente de habilidades e competências que contemplem não apenas o saber teórico, mas também a capacidade de aplicação prática e a inteligência emocional.
Neste contexto, a interdisciplinaridade e a aprendizagem ativa assumem papel central na construção de uma carreira sólida e adaptável. Para aprofundar essa discussão, conversamos com a médica-veterinária, Dra. Maria Clorinda Soares Fioravanti, presidente da Comissão Nacional de Educação em Medicina Veterinária do CFMV, sobre os desafios e oportunidades na formação desses profissionais, abordando desde a estrutura curricular até as estratégias para se destacar no mercado competitivo.
Revista CFMV: O que são habilidades e competências?
Maria Clorinda Fioravanti: Antes de definir habilidades e competências, é fundamental compreender três conceitos básicos: dado, informação e conhecimento.
- Dado: é o menor nível de abstração da informação, sendo puramente sintático. Pode ser expresso em números, imagens, textos entre outros, sem nenhum significado específico.
- Informação: resultado da organização e interpretação dos dados, que já expressam significado. Obrigatoriamente contém semântica, representando uma abstração do que está na mente de alguém.
- Conhecimento: é um conceito mais abrangente que se refere é uma abstração interior, pessoal, de algo experimentado, vivenciado por alguém. Ou seja, conhecer é incorporar um conceito novo, ou original, sobre um fato ou fenômeno qualquer.
No contexto da formação de estudantes podemos dizer que o conhecimento é a apropriação e a transformação das informações recebidas ao longo da vida acadêmica, profissional e pessoal dos indivíduos.
- Habilidade: saber fazer algo com eficiência. É a capacidade de transformar conhecimento em resultados, passando pela aptidão de resolver problemas, nas suas mais diversas abrangências, científica, técnica e pessoal. As habilidades são qualidades que uma pessoa tem naturalmente para fazer algo, são geralmente de ordem prática e mensuráveis. Por exemplo facilidade para aprender línguas, ter boa comunicação e ser proativo. As habilidades podem ser inatas ou aprendidas.
- Competências: são características que podem ser aprendidas por meio de treinamento ou experiências. De maneira simples podem ser entendidas como o conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias para desempenhar atividades, que devem ser desenvolvidos e aperfeiçoados, não só durante o período da graduação, mas durante toda a vida profissional. Alguns exemplos de competências são: liderança, inteligência emocional, raciocínio lógico, confiabilidade, ética e moralidade.
Revista CFMV: Como você define a formação interdisciplinar e a sua importância na Medicina Veterinária e na Zootecnia?
Maria Clorinda Fioravanti: Interdisciplinar e multidisciplinar são conceitos relacionados a integração de diferentes áreas do conhecimento para produzir novos saberes, em maior quantidade e de forma mais rápida. No processo de formação dos estudantes, a principal diferença é que na interdisciplinaridade existe relação entre os conteúdos curriculares, enquanto na multidisciplinaridade eles são estudados de forma simultânea. Atualmente, com toda a mudança vivenciada pela sociedade e pelo mundo do trabalho, especialmente depois da internet, redes sociais e mais recentemente da inteligência artificial (IA), não é mais possível desenvolver processos educativos que não se estruturem em multi e interdisciplinaridade. O resultado é uma formação mais ampla e diversificada. Essa característica é relevante em todas as áreas, mas especialmente na Medicina Veterinária, que sem dúvida, é uma das profissões regulamentadas no nosso país com mais áreas de atuação.
O projeto pedagógico de curso (PPC) com abordagem multidisplinar, que é uma característica intrínseca da Medicina Veterinária e da Zootecnia, deve incentivar a contextualização e a formação integral, não se limitando a construção de conhecimentos restritos a componentes curriculares isolados. Essa característica só pode ser plenamente atingida com a interdisciplinaridade, onde os conteúdos dos componentes curriculares interagem e se completam na abordagem do tema comum. Nesse contexto habilidades importantes como: autonomia, responsabilidade, comunicação e trabalho em equipe são desenvolvidos.
Com a multidisciplinaridade busca-se transformar a aprendizagem em um processo mais lúdico e interessante para os estudantes, ao trazer problemas reais e práticos para dentro da sala de aula. Na interdisciplinaridade, ao relacionar as diferentes áreas do conhecimento é indispensável que sejam aplicadas as ferramentas da aprendizagem ativa, especialmente para incentivar o estudante a criar soluções para problemas contextualizados.
Em sua opinião, quais são os principais benefícios de integrar conhecimentos de diferentes áreas na prática profissional?
O principal benefício é a qualidade do estudante que será formado. Caso essa integração não ocorra, os cursos não conseguirão implantar, na sua totalidade, as premissas/orientações constantes na Resolução nº 3, de 15 de agosto de 2019, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina Veterinária. Cabe ressaltar que é preciso trabalhar junto ao MEC para o reconhecimento de que a Medicina Veterinária é uma profissão com dupla inserção, pertence a área das agrárias e da saúde, especialmente considerando a evolução do conceito de saúde para o de Saúde Única, abordagem que reconhece a interconexão entre a saúde humana, animal e ambiental.
Quais são os principais desafios enfrentados pelos recém-formados ao ingressar no mercado de trabalho?
A necessidade de se destacar, para além do conhecimento técnico-científico, ou seja, uma base sólida de conhecimentos científicos e técnicos é essencial, mas se não vier acompanhada das habilidades e competências, a inserção no mundo do trabalho será mais difícil. Há algum tempo já existia a demanda por formação complementar nas áreas de informática, línguas estrangeiras e técnicas de comunicação, mas várias outras habilidades e competências passaram a integrar essa lista, especialmente inteligência emocional, proatividade e capacidade de solucionar problemas.
E para os futuros profissionais que ainda estão na Universidade, quais experiências extracurriculares podem fazer a diferença na construção de uma carreira?
Participação em projetos de pesquisa e extensão e realização de estágios extracurricular.
A curricularização da extensão aconteceu de cima para baixo, ou seja, foi uma exigência do MEC. A extensão proporciona aos estudantes universitários experiências práticas, que complementa a formação acadêmica com aprendizados que vão além das salas de aula e dos laboratórios. As atividades de extensão têm a possibilidade de promover a troca de conhecimento, a inclusão social e o desenvolvimento humano.
A iniciação científica ou tecnológica (IC/IT) traz inúmeras vantagens para o estudante como: fuga da rotina e da estrutura curricular; desenvolvimento de capacidades mais diferenciadas nas expressões oral e escrita e nas habilidades manuais; quebra do mito do ato de pesquisar, da compreensão do papel do cientista, da participação na construção do conhecimento científico e na sua socialização; os estudantes aprendem a ler bibliografia de forma crítica; ensina o estudante a perder o medo, a não ter pânico do novo. Já foi demonstrado que os estudantes que participam dos programas institucionais de IC/IT desenvolvem mais facilmente as habilidades e competências necessárias para o exercício da profissão de médico(a)-veterinário(a).
As novas DCNs indicam que a formação deve ser: generalista, humanista, crítica, reflexiva e empática. Dentre as competências e habilidades exigidas estão: atenção à saúde (integração e ética); tomada de decisões (evidências científicas); comunicação (verbal, não verbal e habilidades de escrita e leitura; domínio de língua estrangeira e de tecnologia de comunicação e informação); liderança (compromisso, responsabilidade, empatia, habilidade para tomada de decisões, comunicação); administração e gerenciamento (empreendedor, gestor, empregador ou líder de equipe) e educação permanente (aprendizado contínuo, mobilidade acadêmico/profissional, cooperação em redes nacionais e internacionais). Ao traçar esse paralelo, fica claro que a IC/IT desenvolve praticamente todas as habilidades e competências necessárias para formar a nova geração de veterinários e zootecnistas.
Nem todas as instituições com cursos de Medicina Veterinária têm infraestrutura necessária para garantir a realização de atividades práticas em quantidade e qualidade. Fica a sugestão: para os estudantes que estão em cursos que não contam com cenários de prática na instituição, é essencial complementar a formação com estágios extracurriculares. Mas mesmo para os que estão em instituições consolidadas, conhecer outras realidades é essencial para completar a formação.
Quais competências não técnicas você considera indispensáveis para um médico-veterinário ou zootecnista hoje?
Penso que a melhor resposta para essa pergunta é retomar as novas DCNs, especificamente, o Art. 6º, onde para além dos conhecimentos técnicos relativos à produção animal, produção de alimentos, saúde animal, saúde pública e saúde ambiental, são listadas as seguintes competências e habilidades gerais: atenção à saúde; tomada de decisões; comunicação; liderança; administração e gerenciamento; e educação permanente.
Eu acrescentaria a essa lista os aspectos de integridade acadêmica na sua concepção ética mais abrangente. De acordo com o International Center for Academic Integrity (ICAI), a integridade em ambientes acadêmicos é um componente fundamental do sucesso e do crescimento, pois prepara os estudantes para desafios pessoais e profissionais, além de fornecer um plano para a realização e sucesso futuros, sendo seus pilares a honestidade, confiança, justiça, respeito, responsabilidade e coragem.
Quais dicas você daria para profissionais que buscam se destacar em um mercado de trabalho cada vez mais competitivo?
Aproveitar o período de formação universitária para desenvolver o maior número de habilidades e competências possíveis, não perder oportunidades de conhecer outras realidades práticas e, acima de tudo, entender que o final da graduação é só o primeiro passo para a formação continuada que deverá ocorrer ao longo de todo o período de atividade profissional. Considerar a possibilidade de cursar Residência, Mestrado e Doutorado. Se optar por um curso de especialização, escolha um que seja de excelência, para não investir em cursos de baixa qualidade.
Médica-veterinária, Dra. Maria Clorinda Soares Fioravanti (Comissão Nacional de Educação em Medicina Veterinária)