Em 2024, celebrou-se em Paris, o centenário da Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA). No Rio de Janeiro, realizou-se a quinquagésima reunião ordinária da Comissão Sul-americana de Luta Contra a Febre Aftosa (COSALFA). Neste espírito de comemoração, o Brasil também avança na evolução da condição do status sanitário de seu rebanho bovino, suíno e de pequenos ruminantes, assim como para o reconhecimento da eficiência de seu serviço veterinário oficial. Neste processo, desde maio houve a conclusão do processo de vacinação para febre aftosa em todo país, na busca do reconhecimento internacional da condição de livre da doença sem vacinação, conforme publicado pela Portaria Mapa n° 678 de 30 de abril de 2024.
A febre aftosa é descrita como uma doença vesicular com um curso clínico agudo que afeta os animais de unha fendida, ruminantes domésticos e suínos (Alexandersen et al., 2003). É uma doença altamente contagiosa, com o agente viral de replicação e propagação rápida (Grubman & Baxt, 2004). Atualmente existem sete sorotipos identificados do vírus da febre aftosa, com distribuição principalmente na Ásia e África, em zonas caracterizadas pela alta densidade de animais domésticos, associados a baixos índices de desenvolvimento econômico (Knight-Jones, McLaws, & Rushton, 2017). Novas variantes virais emergem regularmente dando origem a ondas sucessivas de infecção que, algumas vezes, alcançam regiões livres. A vacinação com imunógenos inativados tem sido usada em grande escala, como estratégia de sucesso para controlar a doença, embora a imunidade induzida seja de curta duração e sorotipo específica (Dias-San Segundo et al., 2017).
O principal efeito da febre aftosa, além dos impactos na produção e na saúde animal, é seu impacto no comércio dos produtos derivados das cadeias pecuárias. Devido ao alto poder de difusão do vírus e aos impactos econômicos provocados pela doença, os países estabelecem fortes barreiras à entrada de animais susceptíveis e seus produtos oriundos de regiões com ocorrência da febre aftosa. Tais barreiras têm efeitos negativos sobre a pecuária e toda a economia do país, com graves consequências sociais. O estabelecimento destas condições está previsto no Acordo da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre a aplicação de medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS), que permite que os membros adoptem medidas para proteger a vida e a saúde humana e dos animais em seus territórios. Assegurar uma condição satisfatória de ausência de circulação viral e eficiência dos serviços veterinários oficiais, contribui para o livre fluxo comercial dos produtos pecuários.
O capítulo 8.8., do Código Sanitário dos Animais Terrestres, da Organização Mundial de Saúde Animal é o documento de referência internacional para definição dos critérios de infecção e da disseminação, dos padrões para reconhecimento de países, zonas e compartimentos livres e da indicação da forma segura de realização do comércio de produtos obtidos das espécies susceptíveis. Enquanto o capítulo 3.1.8., do Manual de Provas Diagnósticas e Vacinas, estabelece os critérios para as provas diagnósticas e as condições de biosseguridade das vacinas aprovadas para uso em programas de controle oficial.
O Brasil é hoje o maior exportador mundial de carne bovina e o quarto de carne suína. Com a estimativa de 234 milhões de cabeças em 2022, o rebanho bovino brasileiro mais do que dobrou em relação aos anos 1970. O rebanho de suínos cresceu 4,3%, em 2022, chegando ao recorde de 44,4 milhões de animais. A região Sul reúne 51,9% do efetivo nacional. O rebanho de caprinos e ovinos no Brasil está estimado em 40 milhões, com maior número de animais concentrados na região Nordeste, com grande potencial de exportação de material genético e desenvolvimento da cadeia de produção de carne e leite. Os sistemas de produção pecuária contribuem para a distribuição de riqueza, para fixação do homem no campo e de sobremaneira para a segurança alimentar doméstica e global.
Assegurar a disponibilidade de proteína animal de qualidade, ao mercado consumidor brasileiro e em diversos países, tem sido uma das missões do Ministério da Agricultura e Pecuária. Diversas ações têm fomentado manejo sanitário, reprodutivo mais eficientes, com o uso de insumos modernos, que contribuíram para o aumento da produção em bases sustentáveis. O Programa Nacional de Vigilância para a Febre Aftosa (PNFA) é um exemplo de política pública, desenvolvida em parceria entre o Ministério da Agricultura e Pecuária, o Serviço Veterinário Oficial nos estados, a representação dos produtores e o setor privado, para a manutenção de zonas livres da doença, para assegurar o fluxo de comércio de produtos destas cadeias pecuárias, em alinhamento com as diretrizes sanitárias estabelecidas internacionalmente.
A América do Norte, o Caribe e a América Central são consideradas livres de febre aftosa sem vacinação há mais de 50 anos. Na América do Sul, a Venezuela é o único país ainda não reconhecido internacionalmente como livre da doença. Nas Américas, já foram identificados sorotipos A, O e o C, embora haja mais de uma década não se registrem casos da doença na região.
Os países da América do Sul, com exceção da Venezuela, avançaram na erradicação da febre aftosa. Ainda no ano 2012, os países membros da OMSA aprovaram uma estratégia global para o controle da febre aftosa. Essa estratégia, indicou no Programa Hemisférico de Erradicação da Febre Aftosa (PHEFA), as diretrizes para avanço no controle e erradicação da doença no continente americano.
A introdução da febre aftosa na Brasil tem registro no Século XIX, oriunda do continente europeu. A disseminação da doença no território deu-se em condição associada à expansão da atividade pecuária na região e das poucas medidas efetivas para seu controle.
Apenas em meados do Século XX, o cenário foi alterado, com a decisão do Brasil de hospedar o Centro Panamericano para Febre Aftosa e Saúde Pública Veterinária (PANAFTOSA), em 1951, no Rio de Janeiro. Trata-se de organismo de referência para a doença, reconhecido internacionalmente e pertencente à Organização Panamericana de Saúde (OPAS). Na década seguinte, foi institucionalizada a primeira Campanha Nacional contra a Febre Aftosa, com a definição de políticas e pesquisa para apoio à produção de vacinas em território nacional, a imunização do rebanho, o estabelecimento de medidas padronizadas de controle de focos, do cadastramento de propriedades rurais, do controle de movimentação de animais, bases do funcionamento do serviço veterinário oficial. Esta condição favoreceu ainda ao Brasil gerir informações sobre a distribuição da doença no país, na busca de estabelecer estratégias para sua eliminação.
Ainda na década de 80, foram identificadas as bases técnicas para erradicar a febre aftosa na região, em decisão alinhada com o PHEFA. O Brasil ocupa posição estratégica neste cenário, por compartilhar fronteiras com 10 dos 12 países da América do Sul, exigindo relações bilaterais contínuas.
A estratégia de controle da doença incluiu a realização de campanhas de vacinação, essenciais para desenvolver a imunidade do rebanho, dificultar propagação do vírus no ambiente, face sua eventual reintrodução e, consequentemente, promover a sua erradicação. Estabeleceu-se no Brasil, um parque industrial, apto a fornecer, com critérios elevados de biossegurança, o número de vacinas necessário para atendimento ao programa, com produtos com alta qualidade, de forma a atender aos padrões internacionais, requeridos para uma campanha desta magnitude.
No Brasil, a primeira zona livre de febre aftosa com vacinação foi implantada em 1998, composta pelos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Após isso, foi iniciado um processo gradativo de implantação de zonas livres no restante do país. A situação sanitária oficial de todo Brasil é de país livre de febre aftosa. A Organização Mundial de Saúde Animal já reconhece como áreas livres da doença sem vacinação, os estados de Acre, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, além de catorze municípios do estado do Amazonas e cinco municípios do estado do Mato Grosso. As demais áreas do país deixaram de realizar vacinação entre o segundo semestre de 2023 e primeiro semestre de 2024.
O último registro da doença no país ocorreu em 2006, no município de Eldorado, no Mato Grosso do Sul. O surto envolveu 34 casos do vírus tipo O. As ações de emergência foram implementadas, incluindo o abate de animais doentes, além daqueles com contato direto e indireto, resultando na destruição de 34.330 animais suscetíveis. O governo compensou os proprietários com um total de USD 8.517.480,00. Somente em abril de 2008 foi possível o reconhecimento internacional do status da região como zona livre de febre aftosa com vacinação.
O caminho exitoso da estratégia de erradicação da doença no país foi delineado no âmbito das ações estratégicas do Programa Nacional de Erradicação da Febre Aftosa (PNEFA), iniciado em 2017 e alinhado com o Código Sanitário para os Animais Terrestres, da Organização Mundial de Saúde Animal. Neste processo, já era identificada a substituição gradual da estratégia de vacinação contra a febre aftosa, pela ampliação da capacidade do serviço veterinário oficial e o fortalecimento do sistema de vigilância em saúde animal.
Após a suspensão da vacinação contra a febre aftosa em todo o País, o Mapa encaminhou relatório à OMSA, solicitando evolução do status sanitário, para a condição de livre de febre aftosa sem vacinação. O pedido envolveu a avaliação epidemiológica em 22 estados, que representam cerca de 90% do território nacional e 80% da população de bovinos e bubalinos no País. As condições avaliadas de forma satisfatória, permitiram dar o último passo para tornar todo o território brasileiro internacionalmente reconhecido como livre de febre aftosa sem vacinação.
A eliminação da vacinação contra a febre aftosa no Brasil deve desonerar o pecuarista brasileiro em mais de R$ 825 milhões por ano, valores necessários à aquisição da vacina, sem contar os custos de aplicação. Entretanto, independente do reconhecimento internacional, a condição atual do Brasil para febre aftosa requer atenção especial. Há necessidade de redobrar a vigilância para a doença, de seguir investindo no sistema de defesa sanitária animal nos estados e de fortalecer a participação do setor produtivo.
O Mapa e os serviços veterinários estaduais têm trabalhado intensamente nos últimos anos preparando o país para essa transição. Como exemplo do trabalho realizado, destaca-se o desenvolvimento de sistema de vigilância baseado em risco, dirigido às zonas livres sem vacinação, a ampliação da comunicação com a sociedade sobre os sinais clínicos da doença e sobre a necessidade de rápida identificação e notificação de qualquer suspeita ao serviço veterinário oficial, a constituição de fundos privados para apoiar o sistema de vigilância e participar da indenização dos produtores frente a uma emergência veterinária.
Muito tem sido realizado para manter o nível de capacitação do serviço veterinário oficia e para manter o nível de preparação contínua para rápida detecção e atuação na contenção, frente à possível reintrodução da doença no País. O Programa de Avaliação e Aperfeiçoamento da Qualidade dos Serviços Veterinários Oficiais tem obtido êxito na melhoria das capacidades regionais de enfrentamento à doença. Adicionalmente, o Mapa está avançando na constituição de um banco nacional de vacinas para a febre aftosa, visando assegurar no País a pronta disponibilidade de vacina para uso nas estratégias de contenção da doença, frente a eventual reintrodução do agente viral.
O Brasil, até o presente momento, optou por manter zonas livres da febre aftosa independentes no território nacional. Diante de uma eventual reintrodução do agente viral, a zonificação tem como vantagem a suspensão temporária pela OMSA da certificação sanitária apenas para a zona de detecção da doença, não afetando a condição sanitária para as demais zonas. Como desvantagem, envolve a necessidade de manutenção de sistemas de vigilância e fiscalização específicos que garantam a segregação das zonas livres implantadas.
Em complemento à zonificação, a OMSA oferece como medida para redução do impacto econômico e social frente à reintrodução do agente viral em países ou zonas livres de febre aftosa, a possibilidade de implantação de zonas de contenção em torno dos focos, limitando a doença no menor espaço geográfico. Nessa estratégia, a suspensão do status sanitário pela OMSA fica restrito à zona de contenção implantada. Nos planos de contingência e nos exercícios simulados realizados pelo Mapa, dedica-se grande esforço para capacitação dos profissionais do serviço veterinário para implantação da zona de contenção no menor tempo possível.
Finalmente, cabe destacar que desde 1996, a febre aftosa se tornou o primeiro caso em que foi indicado um sistema para reconhecimento de países e zonas livres, com base em um procedimento transparente, científico e imparcial, reconhecido e liderado pela OMSA. O procedimento voluntário permite que os Membros da Organização solicitem duas categorias de status para seu país ou zona dentro de seu país: o status livre de febre aftosa, onde a vacinação não é praticada e o status livre de febre aftosa, onde a vacinação é praticada. A obtenção do reconhecimento de status sanitário, como livre de febre aftosa sem vacinação, concedido pela OMSA, representa um marco na economia dos Membros, pois facilita sobremaneira o comércio de animais e seus produtos, entre os países, e cria oportunidades de acesso àqueles mercados que remuneram de melhor forma os produtos adquiridos.
É notório, que uma eventual ocorrência de febre aftosa em países ou zonas reconhecidamente livres de febre aftosa resulta na suspensão imediata do status daquele território. A perda de status resulta na perda de acessos aos mercados de exportação, só recuperado quando o status for restaurado. Além disso, o processo para recuperar o status de livre de febre aftosa envolve investimento e ações significativas. O status de livre de febre aftosa do país ou zona pode ser recuperado mediante fornecimento de evidências suficientes de que o país ou zona está em conformidade com as disposições do Código Terrestre e da demonstração da eficiência do serviço veterinário oficial, capazes de apresentar evidências suficientes da ausência de febre aftosa naquele país ou zona e na demonstração de que há medidas apropriadas em vigor para evitar a reintrodução ou propagação.
Após mais de 70 anos de luta organizada contra a doença e quase 20 anos sem ocorrência de focos no País, muitos desafios ainda persistem. A estratégia utilizada no Brasil de avançar quanto ao status sanitário para febre aftosa está alinhada com a sociedade brasileira e com as diretrizes da OMSA e do PHEFA.
O Mapa, considerando o cenário atual, está antecipando e priorizando a negociação com os principais países importadores, visando garantir a manutenção do acesso aos mercados já conquistados e a ampliação de novas possibilidades para inserção da pecuária nacional no comércio internacional, com diversificação e agregação de valor a esta cadeia de produção. Com certeza, o status de livre de febre aftosa sem vacinação impactará de forma favorável nessa negociação.